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domingo, 24 de novembro de 2013

Contradição


Quanto maior a sensibilidade, maior o martírio – um grande martírio”.
Leonardo Da Vinci
Podemos entender essa frase como uma bela metáfora para contradição. Apreender este conceito é compreender a essência de que opostos mantém sentidos em sua relação mútua.
O filósofo francês Jacques Derrida a definiu como “nada pode ser e não ser ao mesmo tempo”.  Entretanto em seus escritos filosóficos encontramos reflexões acerca da desconstrução aliada à contradição que, ao compreendermos essa dinâmica, estamos desvelando os reflexos conceituais, as seqüências e associações de idéias que precedem e condicionam os pensamentos, operando como o inconsciente que fala “apesar de”. 
No texto de Washington Lessa, quando ele escreve sobre a contraposição dos ideais modernistas de unidade, clareza, simplicidade e harmonia as categorias de riqueza, ambigüidade, contradição e redundância, lemos: “é importante destacar que essas iniciativas se colocam como movimentos-manifestos, similares, de certo modo, aos movimentos artísticos de vanguarda. E, ao mesmo tempo, isto vem abrir espaço para o desenvolvimento de poéticas autorais particulares, voltadas para questionamentos próprios da prática artística”.
Diante dessa afirmação, podemos pensar a contradição como conceito que produz sentidos bastante flexíveis e ágeis na sua capacidade de articular referências culturais variadas, resultando em obras inventivas e criativas.
Em a Persistência da Memória de Salvador Dali, 1931, a imagem de relógios se derretendo induz à tentativa de resolver a questão dos opostos sonho e realidade.  Ao tentar resolver esses contrapontos o artista se afasta da realidade que deseja provar. A função de contar o tempo não importa mais, pois a temporalidade é mais do que mostra os ponteiros. Torna-se  uma experiência maior, que envolve os sentimentos humanos de cada indivíduo.   
No Trenzinho de Mira Schendel, 1966, a contradição pode ser observada entre a delicadeza estética e a força da mensagem ou entre a leveza do papel e o peso físico de um trem.  Segundo a historiadora da arte Maria Eduarda Marques, as séries de trabalhos de Mira, nas quais surgiu esta obra, representam uma intenção desmistificadora  diante do mercado e da institucionalização da arte. São trabalhos que descritos nas palavras da própria artista, estão em oposição ao permanente e ao possível. 
O Bicho de Lygia Clark, 1960, obra que faz parte da série que inspirou Ferreira Gullar a desenvolver a Teoria do Não Objeto - onde ele cita que não são quadros, nem esculturas, nem objetos utilitários - está no conceito, pois é arte apesar de se realizar fora do que é convencionalmente definido como artístico. Ela rompeu com a noção de espaço pictórico e explorou a integração das obras com o espaço real.  Revolucionou o antigo conceito de que as obras de arte eram feitas apenas para a contemplação passiva, dando início a uma forma de arte onde se exigia a participação do espectador.
Segundo o crítico de arte Octávio Paz, na obra A Roda de Bicicleta de Marcel Duchamp, 1913, a contradição surge como essência do ato - “é o equivalente plástico do jogo das palavras: este destrói o significado, aquele a idéia de valor.” Gratuitamente o gesto do artista criava a obra de arte e, ao mesmo tempo, desfazia esta noção.
É curioso notar que se levarmos em conta a origem da palavra arte -"ars" técnica ou habilidade -, é contraditório quando artistas não usam suas aptidões técnicas para expressarem suas idéias. Mesmo as possuindo eles preferem discutir outras questões, provocar outras reflexões.

sábado, 23 de novembro de 2013

OSTRANENIE


“...e, ainda assim, esse conhecimento não diminui em nada a impressão de estranheza. A teoria da incerteza intelectual é, assim, incapaz de explicar aquela impressão.” Sigmund Freud - 1919

Em seu ensaio DAS UNHEIMLICHE de 1919, Freud descreve o “estranhamento” como percepção, um sentimento, um fenômeno.  Em 1917 Viktor Chklavski publicou Iskusstvo kak priem, A Arte Como Processo, onde cita o Ostranenie – “estranhamento”. Provavelmente, apesar da proximidade temporal, eles nunca souberam dessa afinidade. Ambos trataram da suspensão do sentido habitual de um objeto. Ambos contribuíram para construção da ciência da estética e trataram o procedimento estético como único; aquele que não se repete. Suas concepções vigoram até a atualidade.
Em a Obra Aberta, Umberto Eco desenvolve a idéia que quem interpreta a mensagem deve se questionar sobre a flexibilidade, potencialidades, códigos, linguagem, entre outros. Seria a auto-reflexibilidade, que se manifesta quando o destinatário volta à obra para (re)significá-la com sua própria visão de mundo.
A esse efeito da comunicação estética ele chama de “estranhamento”, efeito cujo objetivo é dar sensação do objeto como visão e não como reconhecimento. Ele consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e duração da percepção. A essência desse fenômeno seria o emprego de um ponto de vista novo ou “estranho”, a respeito de algo já conhecido, mas descrito como se fosse pela primeira vez. Entretanto, para Umberto Eco a mensagem estética vai além da contemplação interpretativa. Ela adquire um caráter inventivo, justamente a partir desse “estranhamento”.
O “estranhamento” seria então esse efeito especial criado pela obra para nos distanciar em relação ao modo comum como apreendemos o mundo e ela mesma, o que nos permitiria entrar numa dimensão nova, só visível pelo olhar estético ou artístico.
Em o Retorno à razão de Man Ray, 1923, imagens resultantes da livre experimentação e estudos feitos da versão cinematográfica dos fotogramas têm como objetivo a execução de um trabalho fora das convenções. A seqüência desconexa causa o “estranhamento” assim como a técnica, que consegue gerar imagens de forma não usual. Desta maneira temos alterações no modo de apreensão do cinema e de sua função.
Na obra Os dois convidados de Maurice Tabard, 1935, somos
apresentados a uma imagem abstrata com características da abstração informal; com suas formas livres, irregulares e imprevistas.  Nesta técnica o fotógrafo trabalhou com o efeito surpresa já que não tinha como controlar o resultado. Ao apreciarmos essa imagem ela nos causa “estranhamento”, pois se não fosse o próprio título sugerir dois objetos, o que teríamos visto? Como toda obra de influência surrealista, traços do inconsciente surgem tanto em quem cria quanto em quem aprecia.
O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene, 1919, carrega uma estética toda causadora de “estranhamento”. Imagens escuras, tomadas distorcidas, cenários imaginados, ambientação sufocante, contrastes bruscos. Não bastasse isso, a atmosfera carregada de angústia revela outro ângulo pelo qual apreendemos “estranhamento”; o lado da dimensão humana com a solidão, visão distorcida de mundo e desvios psicológicos dos personagens.
Em a Distorção No. 40 de André Kertész, 1923, temos as sensações apreendidas nas salas dos espelhos com as imagens que surgem desses reflexos. Atração muito comum em parques de diversões antigos. Essa obra é o resultado de experiências do fotógrafo sobre as formas geradas por esses espelhos.  Também de inspiração surrealista, os reflexos inusitados dessa obra - que faz parte da série de nus feita pelo artista - nos transportam a outro lugar. As expectativas ao observá-la não correspondem ao senso comum. Uma linguagem realista subverte a imagem real e a coloca em outra posição.
O filme dadaísta Entr’acte de Renê Clair, 1924,“causa” em nós quando também, altera a posição do objeto. A bailarina dançando se apresenta por um ângulo não comum, lembrando um ser marinho. As tomadas se alternam em focos variados; velocidade intercala com suavidade e delicadeza e, culmina com o impacto da face barbada. Estranho... Muito estranho. No entanto, dadaísta e irônico tal qual uma bizarrice circense.
Em qualquer dos casos o “estranhamento” é essa forma singular de ver e apreender o mundo e aquilo que o constitui.  Neste ponto encontramos as manifestações artísticas e seus procedimentos, desafiando e transformando idéias pré-concebidas e introduzindo novas formas de expressão.